Em recente decisão prolatada (9/2/2023) pelo Tribunal Pleno do STF (Supremo Tribunal Federal) quando da apreciação do pedido de declaração de inconstitucionalidade do artigo 139, IV do CPC, redigido na ADI nº 5.941 pelo Partido dos Trabalhadores (PT), a Corte Constitucional, julgando improcedente o pedido, ratificou a constitucionalidade do dispositivo, o que gerou grande repercussão no meio jurídico, bem como na sociedade civil.

Diante de inúmeros comentários equivocados sobre o julgado e diante da relevância da questão — que pode ter reflexos diretos na vida dos jurisdicionados —, decidimos tecer alguns breves comentários sobre as repercussões práticas do tema, objetivando contribuir com o debate.

Antes de mais nada, necessário esclarecer que o CPC traz, de forma explícita, meios coercitivos capazes de fazer com que o exequente obtenha a satisfação do seu crédito, como o bloqueio de valores em conta (art. 854 do CPC) e a penhora de bens (artigo 831 e seguintes do CPC), estas que, por serem explicitamente tratadas no CPC são conhecidas como medidas coercitivas típicas ou diretas.

Ocorre que, nem sempre as medidas típicas serão suficientes para a satisfação do crédito. Tendo isso como norte, o legislador criou o artigo 139, IV do CPC, localizado no Capítulo I do Título IV do Códex Processual — “dos poderes, dos deveres e da responsabilidade do juiz” — que autoriza que o juiz determine outras medidas que não estejam explicitamente consignadas na legislação que sejam “necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial”, in verbis:

Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:
(…)
IV – determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;

É desse dispositivo — bem como do artigo 297 do CPC — que podemos extrair o que ficou conhecido como “poder geral de cautela” que autoriza o juiz a adotar as medidas coercitivas que não estão expressamente previstas na legislação, ou medidas coercitivas atípicas.

Dentre estas, as mais aplicadas são a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e o recolhimento do passaporte (além da suspensão de cartões de créditos, proibição de participar de concursos públicos e licitações e outras) do executado caso ele se furte de quitar a dívida executada.

Com a improcedência da ADI em referência, foi ratificada a presumida constitucionalidade do inciso IV do artigo 139 do CPC, permanecendo hígida a aplicação das medidas atípicas.

Para evitar conclusões precipitadas na aplicação dessas medidas, temos que lembrar que é do STJ (Superior Tribunal de Justiça) a atribuição de interpretar a Lei Federal com o intuito de uniformizá-la.

Nesse diapasão, observando-se os julgados proferidos pela Superior Instância, podemos extrair requisitos que, se não existentes no caso concreto, o deferimento dessas medidas não estará autorizado.

Em recentíssimo julgado (Agravo de Instrumento nº 2254675-26.2022.8.26.0000) prolatado pela 20ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (24/1/2023), o substancioso voto elaborado pelo relator desembargador Roberto Maia abordou com maestria as teses fixadas pelo STJ sobre a matéria, ao dar provimento a agravo de instrumento interposto pelo exequente contra decisão que havia indeferido o pedido de suspensão da CNH e recolhimento do passaporte do executado em primeira instância.

Diante da completude em que abordada a matéria, utilizaremos este julgado para extrair, de forma resumida e prática, as teses que vêm sendo aplicadas pelo STJ no deferimento dessas medidas.

Citando três julgados do STJ (AgInt no AREsp 1842842/MG; Relator Ministro Raul Araújo; DJe de 18/02/2022; AgInt no REsp 1930022/SP; Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze. DJE de 25/06/2021; e REsp nº 1.788.950/MT; Ministra relatora Nancy Andrighi; DJE 26/04/2019) a Colenda Câmara concluiu que, in verbis:

Nos termos do artigo 789 do CPC, a execução tem por finalidade promover atos de expropriação de bens do devedor para viabilizar a satisfação do crédito exequendo, de modo que, em última análise, as medidas coercitivas devem ter por objetivo, não a mera punição do devedor, mas sim o efetivo recebimento dos valores perseguidos, ainda que estimulados por meios indiretos que busquem alcançar esse fim.
Nesse diapasão, o C. STJ já se manifestou algumas vezes sobre o tema, fixando dois requisitos que devem estar presentes, cumulativamente, para o deferimento das medidas, quais sejam, i) subsidiariedade – o exaurimento prévio de medidas menos gravosas ao executado; ii) proporcionalidade – que haja indícios da existência de patrimônio apto a saldar o débito em cobrança, cumulado com indícios de ocultação dolosa desse patrimônio.
(…)

Como demonstrado, o deferimento dessas medidas, em tese, só se justifica quando há a demonstração de ausência de bens penhoráveis (esta verificada pelas pesquisas disponíveis ao judiciário), aliando-se a indícios de que o executado usufrui de padrão de vida incompatível com a ausência de bens demonstrada nessas pesquisas.

Aplicando os requisitos acima, a câmara entendeu que, no caso, estava verificando o exaurimento de medidas menos gravosas ao executado, já que constava dos autos inúmeras pesquisas patrimoniais negativas, além de elementos probatórios que demonstravam que o núcleo familiar usufruía de padrão de vida “incompatível com as pesquisas negativas realizadas nos autos de origem, revelando fortes e convincentes indícios de ocultação patrimonial”.

Para os desembargadores, o exequente demonstrou de forma convincente por inúmeras faturas e contas do executado, além de a família residir em imóvel de alto padrão, os requisitos autorizadores ao deferimento das medidas, provendo o recurso para autorizar a suspensão da CNH e do passaporte do executado.

No caso em tela, ainda houve outro fator relevante consignado pelo doutor relator, que foi a existência de reconhecimento — por decisão preclusa — de tentativa de fraudar a execução por meio de uma alienação fiduciária dissimulada em um imóvel, o que corroborou a ideia de intenção do executado em frustrar a execução.

Quanto à duração da medida, o colegiado, citando outro julgado do STJ, decidiu que ela deve perdurar enquanto persistir a renitência do devedor. Assim fundamentou a corte, in verbis:

Quanto à duração das medidas, estas deverão perdurar “pelo tempo necessário para que se verifique, na prática, a efetividade da medida e a sua capacidade de dobrar a renitência do devedor, sobretudo quando existente indícios de ocultação de patrimônio”, uma vez que elas “servem apenas para causar ao devedor determinados incômodos pessoais que o convençam ser mais vantajoso adimplir a obrigação do que sofrer as referidas restrições impostas pelo juiz” (HC 711.194/SP, relator: ministro Marco Aurélio Bellizze, R.P/ Acórdão: Nancy Andrighi, data de julgamento: 21/6/2022, 3ª Turma, data de publicação: 27/6/2022).

Portanto, por todo o exposto, não se pode concluir que a decisão de improcedência prolatada no julgamento da ADI nº 5.941 permitirá que as medidas coercitivas atípicas sejam utilizadas em qualquer caso e de forma indiscriminada pelos tribunais.

O julgador, analisando concretamente as provas constantes do processo, somente poderá deferir essas medidas excepcionais caso preenchidos os requisitos fixados pelo STJ — que este artigo buscou tratar de forma concisa —, o que na prática é, sem sombra de dúvidas, de dificílima comprovação.

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