Como os contratos de mútuo acompanharam o desenvolvimento das relações comerciais ao longo da história, reproduzindo e se adaptando aos usos e costumes de cada época

 

Por séculos, a capacidade de um indivíduo fazer empréstimos se baseou em sua reputação e seu caráter. Era comum, por exemplo, que um agricultor que plantasse diferentes grãos precisasse de uma saca de café pronta para a torra, mas tivesse apenas frutos recém-colhidos. Sem pensar duas vezes, ele recorreria ao seu vizinho de propriedade e pediria emprestado aquilo que lhe era necessário, oferecendo em troca exatamente o que lhe seria adiantado: uma saca de café pronto para a torra, que ele não tinha à disposição naquele momento, mas teria em alguns dias. Um acordo simples e informal, pautado exclusivamente na confiança e na previsibilidade. Este exemplo de trato acontece até hoje entre pequenos produtores do Brasil, no entanto, a prática de empréstimos semelhantes tem registros ainda mais longínquos, que podem chegar à antiga Mesopotâmia.

Menos comum hoje em dia, a situação descrita acima exemplifica perfeitamente os pilares iniciais de um contrato de mútuo – um instrumento ainda tão usual quanto suficiente, presente no nosso Código Civil desde a sua primeira versão, em 1916, ainda que tenha sofrido algumas alterações na atualização de 2002. Voltando à origem do termo, o mútuo por excelência prevê o empréstimo de coisa fungível, isto é, bem móvel que possa ser substituído mediante a devolução de outro do mesmo gênero, em igual qualidade e quantidade, sendo em face disso representado por um acordo, escrito ou não, que envolve bilateralidade entre as partes. Não é possível, portanto, desconsiderar este tipo de contrato como exemplo legítimo de documento que pode representar o desenvolvimento de relações estabelecidas a partir de práticas comerciais e das normas que o regulam (sendo constantemente atualizadas), passando pela evolução dos usos e costumes, e do desenvolvimento de produtos e serviços, que evoluem para novos negócios dentro do contexto político, social e econômico em que estão inseridos e que acompanham a evolução das relações humanas.

Sendo assim, conforme as práticas comerciais tornaram-se mais elaboradas – lembrando que o simples pagamento em local diverso não era algo que se poderia definir como ágil, na medida em que exigia o envio da moeda para o local – os compromissos foram ficando mais complexos, de modo a não serem mais suficientes  os acordos verbais, assim como o nome e os relacionamentos interpessoais deixaram de ser garantias satisfatórias. Ainda que não seja possível precisar a origem dos contratos na prática do Direito (tanto em relação à sua época de criação quanto ao local), os mecanismos utilizados para firmar essas promessas precisaram se sofisticar, resultando, após progressivos ajustes, nos contratos de mútuo que usamos nos dias de hoje, e que, a despeito da manutenção do nome, incorporam elementos que certamente extrapolam – e muito – as relações primordiais que o originaram. Evidentemente que a maior parte desses acordos permaneceu vinculado a um elemento essencialmente financeiro (“capital”), como a moeda propriamente dita, mas cabe notar que a sua vinculação a outros instrumentos e estruturas jurídicas mais complexas, especialmente de caráter societário, nunca esteve tão em voga, isso sem mencionar elementos vinculados a bens fungíveis com particularidades que extrapolam razoavelmente as matrizes originárias do instituto em si, constatação que demonstra apenas que o mútuo, também neste ponto, mantém a lógica de acompanhamento da evolução da sociedade e das interações humanas relativas a bens e consumo .

De maneira prática, vê-se que as aplicações para um contrato de mútuo no contexto atual, além daqueles destacados anteriormente – bilateral, oneroso ou não, não-solene e temporário –, partirão sempre do elemento “confiança”, na medida em que as garantias a ele vinculadas são permitidas a partir de evento que demonstre a possibilidade de um episódio de inadimplemento do mutuário (ou seja, não pagar), o que implica em características específicas e acordo com o tipo de empréstimo realizado. .Nesse sentido, um dos usos mais frequentes desse tipo de contrato é o mútuo conversível, negócio jurídico que, em que pese a sua natureza de empréstimo, tem por objetivo principal fomentar investimentos em sociedades em desenvolvimento, mediante a disponibilização de recursos pelo investidor/mutuante (quem empresta) à sociedade/mutuária (quem recebe), com o objetivo de tornar-se seu sócio ou acionista mediante a ocorrência de eventos que configurem a conversão do mútuo em aporte de capital, sendo o mútuo portanto uma mera ferramenta de meio para a consecução do acordo principal almejado pelas partes, qual seja, investimento para futura conversão em participação societária.

. De forma similar, é possível também explorar a natureza acessória do mútuo na negociação de uma transação. Neste caso, o mutuante estipula condições para a viabilidade do contrato, como questões relacionadas à governança ou à gestão da entidade, ou mesmo ao destino específico e comprovado daquele capital – elementos que, uma vez não cumpridos, podem dar margem à rescisão do mútuo. Ainda em relação ao elemento confiança, e mesmo que a avaliação sobre a confiabilidade de um indivíduo ou de uma empresa esteja diretamente conectada a pontuações de crédito e bancos de dado de instituições financeiras, é preciso ter em mente que sua observação ainda se mostra preponderante na formalização de mútuos entre agentes que estão à margem dos requisitos de entrada definidos pelas grandes instituições, fator que torna sua análise ainda mais relevante.

Acerca desse respeito, recentemente, em matéria publicada pelo portal InfoMoney, foi exposta a adoção do contrato de mútuo em operações entre investidores em entidades que operam (ou estão sendo investigadas) por esquemas de pirâmide – outro instituto tão antigo quanto o mútuo, mas que ganha nova conotação neste momento a partir da sua aplicação no mercado de criptomoedas. Tal prática não é recente, na medida em que instrumentos de mútuo acabam sendo utilizados para a aplicação de golpes e fraudes, conforme também veiculado em notícias do Portal G1 e da Suno.

Em face de tais ocorrências, fica claro que golpes financeiros não são privilégio do nosso tempo, mas que a competência e sofisticação para a apropriação de ferramentais legais para viabilizá-los nunca deixará de ser atual. E mais ainda, que a reputação se mantém como um fator determinante para qualquer tipo de acordo financeiro, podendo ser, inclusive, artificialmente construída com o objetivo de induzir a tomada de decisão de potenciais investidores. Por isso, mais do que valer-se de um contrato para legitimar uma transação, é preciso aprofundar criteriosamente o conhecimento tanto sobre a operação pretendida quanto sobre a confiança que pode ter na  outra parte antes de assiná-lo.

 

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