Durante o mês de setembro o mercado corporativo nacional se viu diante de uma importante discussão: a inclusão da população negra no mercado de trabalho. O tema se tornou o foco das atenções de muitos em razão do anúncio do programa de trainee 2021 da Magazine Luiza ser exclusivo para pessoas negras.

Mesmo não sendo a pioneira em ações nesse sentido, pois empresas como AMBEV, Oracle, Accenture, Goldman Sachs e Bayer já publicaram processos seletivos destinados a inclusão racial, a forte divulgação do programa fez o assunto intensificar o debate social.

A ação e, principalmente, sua repercussão no mercado deu luz a opiniões diversas sobre o tema, desde aquelas que acreditam tratar-se de uma ação necessária, até as que questionaram a existência ou não de previsão legal para um processo seletivo como o que foi anunciado e, ainda, suas possíveis complicações trabalhistas.

Tais dúvidas são justificáveis na medida em que o ornamento jurídico nacional possui disposições legais que vedam, expressamente, qualquer tipo de prática de exclusão, a exemplo do que dispõe a própria Constituição Federal nos seguintes artigos e incisos:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da república federativa do brasil:

(…)

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quais quer outras formas de discriminação”

 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

Já a Lei do Racismo, Lei 7716/89, dispõe em seu art. 4º, § 2º que “ficará sujeito às penas de multa e de prestação de serviços à comunidade, incluindo atividades de promoção da igualdade racial, quem, em anúncios ou qualquer outra forma de recrutamento de trabalhadores, exigir aspectos de aparência próprios de raça ou etnia para emprego cujas atividades não justifiquem essas exigências.”.

Há, ainda, a Lei 9.029/95 que trata da proibição de determinadas práticas discriminatórias para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho, a qual dispõe em seu art. 1º que “é proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitada para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade”, o que, no caso em tela, configuraria como discriminatória a prática de colocar dado pessoal sensível, como cor ou raça, no currículo a ser distribuído ou cadastro do candidato à vaga como condição qualificadora à esta.

Nesse sentido, não há dúvidas de que as disposições constitucionais e legais descritas vedam expressamente quaisquer práticas discriminatórias, todavia, tais normas, que foram instituídas justamente com o intuito de coibir a exclusão e descriminação da população minorizada, majoritariamente formada por pessoas não-brancas, mulheres, pessoas portadoras de deficiência e LGBTQI+, não podem servir de base para desconstrução de ações que visam assegurar o contrário, ou seja, o acesso a direitos fundamentais e sociais, como o do trabalho (artigo 6º, caput, CF/88), por parte desta população minorizada.

Em contrapartida aos questionamentos acerca da legalidade de processos seletivos exclusivos à população negra, advindos justamente em decorrência das normas citadas anteriormente, em 2010 a Lei 12.288/2010 instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, cujo objetivo, constante de seu art. 1º, é “garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos, combatendo-se a discriminação e demais formas de intolerância étnica.”

O art. 1º do referido Estatuto traz, ainda, os conceitos para discriminação racial ou étnico-racial, desigualdade racial, de gênero e raça, bem como o que se entende por população negra, políticas públicas e ações afirmativas. Já o seu art. 4º elenca os meios prioritários pelos quais deverá ser promovida a participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do Brasil, sendo a adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa um deles.

Muito embora o Estatuto da Inclusão Racial possua disposições expressas acerca da implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrentamento das desigualdades étnicas no mercado de trabalho (art. 4º, inciso VII e art. 39, caput), a discussão do possível caráter discriminatório e contrário à Constituição Federal já foi objeto de análise pelo Supremo Tribunal de Federal, que entendeu pela constitucionalidade e compatibilidade de ações afirmativas com o princípio de igualdade e demais disposições constitucionais que vedam a descriminação, no julgamento da ADPF 186 e ADC 41.

Com o intuito de dirimir ainda mais eventuais dúvidas acerca da configuração dos processos seletivos exclusivos à população negra como um programa de ação afirmativa e, consequentemente, sua legalidade, o Ministério Público do Trabalho – MPT publicou em 2018 a Nota Técnica GT de Raça nº 001/2018, com intuito de assegurar “A possibilidade de contratação específica de trabalhadores oriundos da população negra bem como possibilidade de anúncios específicos e bancos de dados e/ou plataformas virtuais de forma a concretizar o Princípio da Igualdade insculpido na Constituição Federal de 1988”.

Ao fazer um contraponto entre as ações afirmativas, como a abordada neste artigo, e o princípio constitucional da igualdade e da não discriminação, o MPT dá luz a chamada discriminação positiva como um “tipo de discriminação que tem como finalidade selecionar pessoas que estejam em situação de desvantagem tratando-as desigualmente e favorecendo-as com alguma medida que as tornem menos desfavorecidas. A cota racial, por exemplo, é um caso clássico de discriminação positiva[1], sendo a discriminação negativa caracterizada como um “instrumento que se contrapõe à inclusão, favorecendo a exclusão por meio da premissa de que algumas características possuem menos valor que outras”.

Ainda que a abordagem acerca da “discriminação positiva e negativa”, pelos conceitos dados pelo MPT, tenha tido o intuito de justificar o favorecimento a um determinado grupo de pessoas, ao nosso ver, tais práticas deveriam ser enquadradas tão somente na esfera das ações afirmativas, a fim de evitarmos eventuais entendimentos contrárias ao próprio intuito destas ações, que é a adoção de medidas para correção de desigualdades.

Portanto, verifica-se não só a legalidade, quanto a necessidade de ações afirmativas nas esferas pública e privada para corrigir a desigualdade racial da população negra, historicamente excluída em razão de sua cor, mediante a oferta de igualdade de oportunidades para se desenvolverem no ambiente de trabalho, corporativo ou não.

No entanto, para assegurar que ações afirmativas como estas não deixem de ser tomadas pelos entes privados por receio de enfrentamento de questões trabalhistas, como limitações à dispensa dos empregados contratados por programas como abordado em razão de possível entendimento análogo à regulamentação das cotas de pessoas com deficiência (PCD), ou ainda à alegação de presunção de dispensa arbitraria, caberá ao Estado adotar medidas adicionais para conferir maior segurança jurídica nesse sentido.

Como se vê, é importantíssimo a discussão aberta sobre o tema para encontrarmos o melhor caminho à nossa sociedade, em especial à população negra que, mesmo sendo maioria, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019[2], estão longe de ter uma presença minimamente igualitária nos cargos de gerência e liderança no Brasil.

 

[1] Coordigualdades – MPT – Nota técnica GT de raça Nº 001/2018.

[2] 46,8% dos brasileiros se declararam como pardos e 9,4% como pretos.

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